Querendo ou não, o voto do Sr. Jair
Bolsonaro no plenário da Câmara, homenageando, aos gritos, o golpismo, a
tortura, e fazendo alusão ao sofrimento físico e ao terror sofridos por Dilma
Roussef quando de sua prisão – ilegal, por ilegal ser o regime – à época do
regime militar, foi o ápice emblemático, o marco, o símbolo, a evidência, de
uma situação histórica cristalina e incontornável.
Por Mauro Santayna, na RBA
Descarado, despudorado, estúpido,
violento, irracional, com centenas de milhares de votos e milhões de
simpatizantes, muitos deles organizados em uma miríade de grupos que vai de
saudosistas e apologistas da tortura e dos assassinatos de opositores políticos
a fundamentalistas religiosos corruptos, nascidos da exploração da fé, do voto
e do bolso da parte mais pobre e menos informada da população – sem oposição,
sem controle por parte do Judiciário, que a ele se alia por numerosos braços, e
da polícia, que lhe fornece candidatos e simpatizantes – o fascismo veio para
ficar e ocupa já um espaço próprio na sociedade brasileira, desafiando
abertamente a Democracia e o que ela tem de mais importante, essencial, libertário,
humanístico, civilizatório.
A questão inadiável, que se coloca,
para agora e o anos de eventual pós-petismo, é a seguinte: o que fazer com o
fascismo?
Denunciá-lo e isolá-lo, como a
absurda excrescência que é em nosso modo de vida e no nosso espectro político?
Tentar articular uma frente possível, para enfrentá-lo?
Ou permitir que se instale, como
legado do nosso passado colonialista e escravagista, “normalmente”, na vida do
país, e que abra caminho para o poder, ajudando a isolar e a desconstruir, institucionalmente,
as forças socialistas e nacionalistas, sabotando-as, e destruindo-as, e
eliminando-as, praticamente, institucionalmente, da vida nacional?
Por que se chegou a esse ponto de
escancarado desafio às instituições e ao Estado de direito – com o beneplácito
de uma mídia parcial e partidária, e o silêncio e a omissão do Legislativo e do
Judiciário, aí incluído o Supremo Tribunal Federal, que não disse “gato” a
respeito da fala de Bolsonaro?
É fácil procurar culpados no campo
dos inimigos da Democracia, como a velha mídia entreguista, “elitista”, venal e
reacionária, que estereotipa o negro, o gay e a mulher que diz defender, em
suas novelas e programas de televisão.
Também é cômodo atribuir esse estado
de coisas ao próprio fascismo e a seus expoentes surgidos nos últimos anos do
ventre de um anticomunismo tosco, ignorante, imbecil que vão, do que há de mais
abjeto na imprensa brasileira a filósofos de bolso, cantores de rock e
astrólogos, passando por pastores caçadores de passarinhos e sacerdotes
católicos fundamentalistas, com ligações com o exterior.
Mas isso equivaleria a culpar uma
hiena por ser uma hiena, um abutre por ser um abutre, um escorpião por ser um
escorpião.
O fascismo não é razoável, nem
cordato, nem racional. Com ele, não há como ceder ou negociar. Se o fosse, não
seria fascismo.
A culpa pela irresistível ascensão
da extrema direita – e não há outro termo, nos aspectos quantitativo e
qualitativo, que possa descrever com mais propriedade o atual processo – deve
ser procurada entre aqueles que deveriam, por natureza, ter – mais que vocação
– a necessidade de defender a Democracia e aqueles que, no poder, tinham a
obrigação, a responsabilidade histórica e ideológica, de combatê-lo, evitando
que as coisas chegassem aonde estão.
Tendo enfrentado o regime militar e
procurado negociar o seu fim, com o movimento das Diretas Já e a eleição de
Tancredo Neves para a Presidência da República, cabia às lideranças e partidos
que conduziram esse processo ter promovido a defesa, didática, permanente,
verdadeira, racional, dos valores democráticos junto à população, buscando
também a renovação que fosse possível nos meios de comunicação de massa - que
desde antes dos governos militares, continuam basicamente os mesmos e são
controlados pelas mesmas famílias – em benefício da pluralidade de opinião e da
amplitude de informação, evitando que se instalasse no país um senso comum
medíocre, rasteiro e estúpido, ditatorial.
Mas não o fizeram.
A fala de Bolsonaro na votação do
impeachment foi um strip-tease moral por parte da Câmara
O Sr. Fernando Henrique Cardoso, que
agora declarou que a fala do Sr. Jair Bolsonaro em defesa de um torturador
ofende o país, não procurou contar, em seu governo, às novas gerações, o papel
– a serviço também de interesses estrangeiros – do golpismo e do fascismo,
pragas permanentes na história brasileira, no suicídio de Getúlio Vargas, na
sabotagem e nas tentativas de golpe contra Juscelino Kubitscheck durante todo
o seu mandato, na constante pressão contra Jango, até derrubá-lo, pela força
das armas, em 1964.
Assim como não o fez o PT.
Nos 22 anos dos governos tucanos e
petistas, nem sequer um miserável Dia da Democracia foi incluído no calendário
oficial, com direito a feriado, e, depois da sua instituição pela ONU, em 2007,
para ser comemorado todos os dias 15 de setembro, sua existência sequer foi
lembrada, em uma prosaica campanha do Tribunal Superior Eleitoral.
Nesse absurdo país em que estamos
vivendo, em que o Estado de Direito foi substituído pelo Estado de Direita, e
não se pode ter mais liberdade de expressão ou de opinião, o que irrita não é o
ódio irracional, sádico e sombrio dos apologistas do pensamento único, dos
assassinatos e da tortura, mas a inação, a incompetência tática e a falta de
visão estratégica – que nesse aspecto caracterizaram os últimos anos – daqueles
que deveriam dar-lhe combate.
A esquerda errou quando fingiu que
não viu o que estava ocorrendo já na véspera da Copa do Mundo. Errou quando não
reagiu aos insultos, aos atentados verbais, às calúnias, judicialmente. Errou
quando entregou a internet à direita e à extrema-direita, permitindo que esta
última a usasse como um fantástico instrumento de mobilização, mas também
abandonando os portais de maior audiência, para que o fascismo, por meio de
seus trolls, conquistasse para seus argumentos e mentirosos paradigmas, milhões
de brasileiros que estavam começando a se “politizar” justamente naquele
momento – com o acesso à internet – devido à inclusão social e digital
promovida pelo próprio governo.
Errou quando não compilou suas
conquistas, com dados numéricos, incontestáveis – como o crescimento do PIB e
da renda per capita ou a diminuição da dívida líquida de 2002 a 2014 – fazendo
delas a base de um discurso e de um plano coerente de governo, que cobrisse,
institucionalmente, a economia, a soberania, o desenvolvimento e a defesa.
Errou quando não fez uma reforma
política, digna desse nome, quando tinha poder e popularidade para isso,
preferindo adotar, como governos passados, o fisiologismo, no convívio com o
tipo de escolhos políticos que se viu na televisão no dia da votação do
impeachment.
E continua errando quando quer
misturar alhos e bugalhos no mesmo saco de gatos e sair atirando como uma
metralhadora giratória contra tudo e contra todos, em um momento em que já
ninguém quer lhe dar a mão, e taticamente, há muito pouco a fazer para reverter
a situação em que se encontra.
Ao fazer isso, a esquerda – e o
governo – está pedindo para ser isolada ainda e cada vez mais dos demais
partidos e parte expressiva da “opinião pública”.
E está fazendo exatamente o que dela
esperam seus inimigos. Dando murro em ponta de faca.
Deixando-se provocar e pautar, o
tempo todo, pelos adversários e pelas circunstâncias.
Estamos à vontade para criticar,
porque cansamo-nos de alertar, nos últimos anos, insistentemente, em artigos
como “O PT, o PSDB e a arte de cevar os urubus”, “Os Pilares da Estupidez”, e
“De Golpes e de Labaredas”, para o que estava ocorrendo, do ponto de vista da
degradação e da expansão geométrica dos ataques repetidos, premeditados,
intencionais, contra a Democracia brasileira.
É preciso denunciar o golpe
institucional em curso?
Sim. Mas não se pode simplesmente
colocar trava na porta depois da casa arrombada e tentar fazer na saída do
poder o que não se fez em anos em que se estava nele, do ponto de vista da
defesa da Democracia, quando se viu calmamente, da janela, de braços cruzados,
que a boiada estava indo, rês a rês, inexoravelmente, para o brejo.
Tão prioritário quanto, senão
muitíssimo mais importante do ponto de vista histórico e estratégico, é trabalhar
com firmeza para não se isolar, perecendo, politicamente – o que seria péssimo
para a democracia brasileira – e tentar, em contraposição, ir isolando o
fascismo com relação ao resto da sociedade, para evitar que Bolsonaro e,
eventualmente, certo juiz de Curitiba – que tem sido incensado permanentemente
pelos Estados Unidos – triunfem, direta ou indiretamente – transformando-se, na
oposição ou no governo, em fiel da balança eleitoral e em um elemento de
permanente chantagem e desestabilização, para qualquer um que venha a vencer as
eleições presidenciais – agora, antecipadamente – ou em 2018.
O que nos preocupa, no risco que
corre o país, não são os palhaços loucos, sempre subestimados e ridicularizados
no início, como Hitler ou Mussolini, e seus genéricos locais, mas os psicopatas
que medram à sua sombra, que os veem como líderes e exemplo messiânico, e
acreditam piamente neles.
Esses se transformam na alma e no
sustentáculo do totalitarismo, praticando os piores crimes, usando o discurso
ideológico como desculpa para idolatrar o mal e desatar, doentiamente, o seu
ódio, a sua devoção pela injustiça, pela dor e pela destruição de outros seres
humanos.
São eles, não em troca de voto, mas
por acreditar apaixonadamente nas mentiras e mitos mais absurdos, que defendem
a tortura e dizem que poderiam espancar, arrebentar e matar, como reles
assassinos, em seus comentários nos portais e redes sociais.
São eles que – não se iludam –
poderiam tranquila e alegremente sujar suas mãos com o sangue de pessoas
desarmadas porque elas pensam de forma diferente, ou de mulheres grávidas ou
crianças indefesas, por serem filhos de seus adversários políticos, caso lhes
dessem uma arma, um uniforme, um porrete, uma máquina de dar choque, uma
carteira com o seu retrato e um emblema.
Caberá à atitude dos grandes
partidos, e das forças políticas, principalmente a esquerda, e de organizações
da sociedade civil, como a OAB e a Igreja, determinar se a absurda fala de Jair
Bolsonaro na votação do impeachment – que equivaleu a um histórico show de
strip-tease moral por parte da Câmara dos Deputados – será vista, no futuro, como
um marco fundamental para a ascensão política do que existe de pior na
população brasileira, ou como o ponto de inflexão que provocou a reação da
sociedade contra o avanço, até agora, paulatino, inconteste, inexorável, da
fascistização do país.
Mais do que quem vai “governar” a
nação nos próximos meses – entre aspas mesmo, porque há cada vez menos
condições de se administrar este país, ainda mais sob condições de pressão e
chantagem permanentes – é isto que está em jogo neste momento.
Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/281258-1. Acesso em: 21maio2016.
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